segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Querem «desnobelizar» Egas Moniz

Por Lícinio Lima
(Publicado no Notícias Magazine, com a devida vénia)

O neurocirurgião português recebeu o Prémio Nobel da Medicina a 27 de Outubro de 1949, há sessenta anos. Mas há agora um movimento, com origem nos Estado Unidos, que lhe quer retirar o galardão. Há quem considere que a leucotomia pré-frontal que Egas Moniz desenvolveu em 1935, é uma mancha negra na história da psiquiatria.

Será? Trata-se de «pura ignorância, inveja e muita sede de protagonismo de algumas pessoas», garante Alexandre Castro Caldas, antigo director do Centro de Estudos Egas Moniz, durante 12 anos responsável pela cátedra de Neurologia criada pelo nobel em 1911, e actual director do Instituto de Ciências da Saúde (ICS) da Universidade Católica Portuguesa (UCP).

Este movimento de «desnobelização» começou há cerca de dez anos, meio século depois da atribuição do prémio ao neurocirurgião português, e está agora ao rubro. Cinquenta anos é o período de tempo necessário para a abertura dos processos que explicam a atribuição dos prémios. Antes disso, tudo permanece no mais absoluto sigilo.

Abertos os arquivos da Fundação Nobel, acorreram à Suécia dezenas de investigadores de todo o mundo para vasculhar os relatórios dos cientistas responsáveis pela avaliação das candidaturas de Egas Moniz. A documentação revelou dados surpreendentes. Por exemplo, soube-se que fora proposto cinco vezes para o prémio: em 1928, 1933, 1937, 1944 e 1949. Além de que as primeiras nomeações incidiram não sobre a leucotomia pré-frontal mas, sim, sobre a angiografia, a sua primeira grande descoberta científica. Com a corrida aos arquivos, curiosamente, foi também aberta uma campanha de «desnobelização». A ponto de, no calor da discussão, se evocarem comparações com outros laureados e nomeados da História, alguns muito controversos e desprestigiantes. Hitler, por exemplo.

«Seria argumento suficiente contra esta tentação (de desnobelização) aludir à interminável lista de discutíveis e discutidos prémios Nobel da Literatura? Quem se lembra hoje, por exemplo, da obra de Gabriela Mistral? E qual o valor literário da obra de Winston Churchill? Isto sem esquecermos a controvérsia suscitada pela atribuição de vários Prémios Nobel da Paz que foram (e continuam a ser) objecto de críticas vindas de posições políticas diversas – Theodore Roosevelt, Kissinger, Arafat e Rabin». Questões levantadas pelo médico psiquiatra Adrian Gramary na revista Saúde Mental, num artigo que intitulou «De Egas Moniz e da impossibilidade de mudar o passado», ao que acrescenta: «Isso já para não falar do Prémio Nobel da Medicina atribuído ao criador do DDT, pesticida retirado há anos pela sua elevada toxicidade, ou da nomeação de Adolf Hitler, em 1939, para o Prémio Nobel da Paz.»
Todas estas evocações para contestar a onda de «desnobelização» já confirmam, no mínimo, que aquele movimento não estará vazio de argumentos. Não serão apenas invejas. Vamos ver… Mas, antes, talvez seja o momento certo para aconselharmos os leitores menos familiarizados com estes assuntos a fazerem uma pausa para, nas caixas destas páginas, atenderem aos conceitos de leucotomia e de angiografia. Os termos são fundamentais para se compreender a polémica que se segue.


As polémicas

Também um português foi à Suécia vasculhar os ficheiros da Fundação Nobel, graças a uma bolsa de doutoramento da Fundação da Ciência e Tecnologia do Ministério da Ciência e Ensino Superior. Manuel Correia, sociólogo e professor no Instituto Superior Técnico, no seguimento, escreveu a tese «Egas Moniz e o Prémio», resultado de uma «investigação séria e aprofundada», concordam Adrian Gramary e Castro Caldas, sublinhando este último a «forma elegante e criteriosa» com que o trabalho foi elaborado.

Há uma expressão de Manuel Correia que salta à vista, aliás frequentemente citada por Castro Caldas: «A mão do homem não é infalível, nem sequer a distribuir prémios…»
O sociólogo percebeu que a polémica em torno da atribuição do prémio a Egas Moniz não é de agora. Já vem do tempo em que o neurologista laureado desenvolveu a leucotomia, em 1935.

Estando na Suécia, o sociólogo deparou-se com uma bibliotecária norte-americana, Christine Johnson, cuja avó tinha sido leucotomizada em 1954, sem êxito. E aí pôde assistir à campanha desencadeada contra Moniz.

«Troquei vária correspondência com Christine Johnson para perceber as suas intenções», contou Manuel Correia à nm. Segundo este sociólogo, a bibliotecária estava profundamente revoltada com o que acontecera com a sua avó. Esse seu sentimento ter-se-á agudizado quando verificou que, segundo vários autores, aquela intervenção cirúrgica, agora considerada bárbara, ajudou menos de dez por cento dos cerca de cinquenta mil norte-americanos a ela submetidos entre os anos trinta e os anos setenta do século passado. Entre eles conta-se Rosemary Kennedy, uma irmã do antigo presidente norte-americano, John F. Kennedy, que sofria de ligeiro atraso mental. Foi leucotomizada em 1940, com 23 anos. Em consequência, passou o resto da vida num manicómio. Morreu em Janeiro de 2005.

Com esta nova técnica pensavam-se ultrapassadas todas as doenças mentais. A tal ponto que um neurologista norte-americano, discípulo entusiasta de Moniz, Walter Freeman, levado pela euforia, montou uma sala de operações ambulante. O médico andava de terra em terra, em tournée, a fazer as leucotomias. Para facilitar a propaganda, rebaptizou-as de lobotomias, designação que ficou para a história. A sua viatura, com um certo colorido circense, tinha a designação de «lobotomobile» e prometia tornar mais aceitável a vida de muitos doentes psicóticos graves, narra Adrian Gramary. Claro que a maioria acabou morta ou em manicómios. Se não morria do acto cirúrgico morria das infecções consequentes. Os sobreviventes permaneciam o resto da vida num estado de completa apatia. Daí que para o historiador Edward Shoerter a leucotomia seja «uma mancha na história da psiquiatria».

Freeman chegava às cidades com o seu «lobotomobile», enfiava o leucótomo no cérebro do doente, através do lóbulo ocular, chocalhava e mandava vir o seguinte. Era tudo muito rápido e sem anestesia. A avó de Christine Johnson terá sido uma das suas vítimas, o que fez revoltar a bibliotecária anos mais tarde. A pressão junto da Fundação Nobel, por parte de Christine Johnson, e de todos os seus apoiantes, foi de tal forma forte que originou um esclarecimento público passados cinquenta anos. É caso único na história dos Prémios Nobel.

A fundação respondeu em artigo intitulado «Controversial Psychosurgery resulted in a Nobel Prized», escrito por Bengt Jansson. O autor explica que a leucotomia teve o mérito de tornar mais aceitável a vida de alguns doentes psicóticos graves, nomeadamente os esquizofrénicos. Os críticos, no entanto, contra-argumentam, dizendo que os doentes que antes da intervenção eram hiperagressivos passaram apenas a ficar mais calmos, apáticos, numa cama, sem capacidade para se manifestarem. Até questões éticas levantaram, questionando até que ponto seria lícito alterar cirurgicamente a personalidade de uma pessoa. Bengt Jansson lembrou também que o prémio foi atribuído numa altura em que eram ainda inexistentes as terapêuticas antipsicóticas ou antidepressivas. Ou seja, não existiam ainda os medicamentos calmantes (psicotrópicos) que iriam depois superar a leucotomia e declarar a psicocirurgia quase inútil. Um terceiro argumento foi que em 1949 o prestígio internacional de Egas Moniz era já notável devido à descoberta da angiografia.

Este terceiro elemento é, talvez, o mais importante, pois até muito recentemente havia cientistas a pensar que na origem do Prémio Nobel teria estado a angiografia.
Castro Caldas, uma referência da neurologia em Portugal e no mundo, que ainda recentemente recebeu mais um prémio internacional, e um fervoroso admirador de Egas Moniz, com quem os seus avôs, paterno e materno, conviveram de perto em Coimbra, em declarações à nm é taxativo: «Penso que as razões aduzidas para não atribuir o prémio à angiografia são erradas, como são também erradas as razões para o atribuir à leucotomia.»

Perante isto, pergunta-se: estará um «discípulo» de Egas Moniz a dar razão aos que promovem a campanha de «desnobelização»?

Não, de todo. A angiografia é reconhecida na comunidade científica como um passo «de gigante» na história da medicina. «Quando em Junho de 1927 consegui ver pela primeira vez ao raio X as artérias do cérebro, através dos ossos espessos do crânio, tive um dos maiores deslumbramentos da minha vida», escreveu Moniz. Esta técnica revelou-se valiosa para o diagnóstico de doenças no interior do crânio. Toda a gente pensou que, graças a ela, o neurologista nascido em Avanca a 29 de Novembro de 1874 acedesse ao Prémio Nobel. Mas tal não sucedeu. Não sucedeu porque o Comité da Fundação Nobel considerou não dever atribuir o galardão a uma descoberta relacionada com a imagiologia. A justificação foi que o prémio também não havia sido atribuído ao descobridor da ventriculografia, Walter Dandy. Este médico também conseguira obter imagem do sistema ventricular através do raio X. Contudo, lembra Castro Caldas, o mesmo critério não foi usado, por exemplo, relativamente à tomografia axial computorizada (TAC). Situando-se igualmente na área da imagem, a descoberta da TAC acabou por ser galardoada. Ou seja, a argumentação para a não atribuição do prémio à angiografia foi fraca, sustenta o director do ICS da UCP.

Na angiografia, o grande desafio de Egas Moniz era como visualizar tumores dentro do cérebro. E entregou-se de corpo e alma à investigação. Sozinho, ia ao Instituto de Medicina Legal, enchia a mala do carro com cabeças de cadáveres, e ia pela cidade até ao Hospital de Santa Marta, onde se encontrava o aparelho de raio X para a realização das experiências. «Em caso de acidente seria muito difícil a Egas Moniz explicar o material que transportava», humoriza Castro Caldas. Foi também necessário inventar uma substância opaca ao raio X que entrasse na circulação sanguínea e permitisse obter a imagem do interior do cérebro pelo contraste. O primeiro líquido usado pelo neurologista, o «torotraste», era fatal para o fígado e também para os tecidos no local da injecção. Esta contrariedade foi muito badalada e, de certa forma, prejudicou o seu reconhecimento nacional e internacional. Mas o maior impacte negativo foi em Portugal. Passados cinquenta anos ainda havia uma aula na Faculdade de Medicina inteiramente dedicada ao fígado do «torotrastre», recorda Castro Caldas, ressalvando que esse líquido já estava fora de uso, além de que era um aspecto secundário na grandiosidade da angiografia. Ora, segundo o professor, a insistência académica nesse lado negativo da questão deveu-se a um «enquistamento da inveja». Poucos cientistas portugueses sentiram orgulho por Egas Moniz, garante. «Na cultura dominante do nosso país, que não me atrevo a considerar exclusiva, desenvolvem-se as invejas como anticorpos de defesa contra a excepção», matizou.


Argumentos contra a leucotomia

Relativamente à leucotomia, a argumentação para a atribuição do prémio é também fraca. Porquê? Porque, diz o professor, a argumentação assentou bastante na dimensão terapêutica, isto é, nos resultados em função da cura. Este argumento é também usado agora pelos que lideram a campanha da «desnobelização». «Ora, isto é, sem dúvida, o componente mais fraco do método proposto», diz o professor. E explica: «A história contemporânea da ciência deverá julgar a leucotomia, não pelo seu impacte na cura dos doentes, que sabemos que foi modesto, embora de alguma valia face ao deserto de outras opções que havia na época, mas a história está a julgá-la como um salto qualitativo no conhecimento da forma como o cérebro sustenta a actividade mental.»

A importância da leucotomia releva-se, pois, por ter permitido experimentalmente confirmar as teorias existentes já em vários países de que o lobo frontal era, sem dúvida, o responsável pela falta de maleabilidade mental indispensável para a vida de relação dita normal. Egas Moniz tornou-se, assim, o primeiro neurologista a desenvolver a psicocirurgia – a cirurgia aplicada no cérebro capaz de alterar o comportamento dos doentes com deficiência mental. Para isso teve também de inventar o leucótomo, o instrumento cirúrgico que penetrava o crânio para realizar a incisão nas fibras nervosas que ligam o lobo frontal a outras regiões do cérebro. «Podemos mesmo dizer que a leucotomia acabou por ser a confirmação experimental das hipóteses resultantes de estudos de casos com lesão cerebral», refere Castro Caldas, frisando: «Na época não eram conhecidas formas eficazes de minorar o sofrimento dos doentes que penavam, agonizando, nas instituições. Todo o alívio que se lhes pudesse dar era, por isso, bem-vindo.» Nunca ninguém antes se tinha aventurado a intervir no cérebro. «A proposta da leucotomia é, sem dúvida, o resultado de uma reflexão profunda sobre as ciências do cérebro e, sem dúvida, também de vanguarda nos conhecimentos da época», garante Castro Caldas.


As incertezas de Moniz

É hora de perguntar: e o que pensava Egas Moniz sobre a sua própria descoberta?
Se nos EUA se realizaram cerca de cinquenta mil leucotomias, Egas Moniz realizou vinte. Apenas vinte. Um terço dos doentes regrediu, outro terço ficou igual, e os restantes terão apresentado algumas melhoras, explicou Castro Caldas. Ele assistia, conduzindo a intervenção. O leucótomo trabalhava nas mãos de Almeida Lima, o cirurgião de excelência que Moniz preparou, mandando-o inclusivamente aprofundar os conhecimentos em Londres. Por isso, o seu outro amigo, seguidor, discípulo, admirador norte-americano, Walter Freeman, que realizou milhares de leucotomias no «lobotomobile», escreve a Moniz a 9 de Julho de 1946 – três anos antes da entrega do Prémio Nobel – e, segundo conta Manuel Correia, pergunta-lhe: «Porque é que em Portugal, onde nasceu a leucotomia pré-frontal, não seguiu a sua prática no ritmo acelerado que era de esperar?»

Egas Moniz responde de forma um pouco atabalhoada. Diz-lhe que não lhe pode contar tudo por escrito, embora estivesse a terminar o seu livro Confidência de Um Investigador Científico, e culpa a censura do Estado Novo e as opressões impostas pela ditadura. Mas a maior desculpa para a magra prática da leucotomia pré-frontal centra-a no seu amigo Sobral Cid, o psiquiatra mais respeitado na época em Portugal, falecido em 1941, ou seja, cinco anos antes desta troca de missivas com Freeman. Moniz diz que Cid era um céptico da leucotomia e dificultava-lhe o acesso aos doentes. «Para obter um doente era necessário ir ao asilo nove ou dez vezes. Dava-me a desculpa de só querer enviar doentes com a história completa; mas as observações não se adiantavam e eu consumia a minha paciência nestas peregrinações», escreveu Egas Moniz.

Para Manuel Correia, «o terreno que Moniz reservou para Cid está minado por múltiplos apartes, insinuações, acusações, tiradas irónicas, que não apenas o desfavorecem nesse impossível terçar de armas entre vivos e mortos, como o responsabilizam historicamente, à partida, pelo baixo número de leucotomias em Portugal».

Mas, segundo Manuel Correia, as contestações a Moniz no seio da comunidade neurologista surgiram desde que a leucotomia foi anunciada, pondo em causa os seus benefícios para os doentes. Os efeitos colaterais eram muitos. «Essas oposições tiveram a vantagem de constituir observações fundamentais e autorizadas, porém, ao mesmo tempo, esgotaram o respectivo impacte crítico nos meandros dos jogos de poder e influência internos.» Garante o sociólogo que «Egas Moniz ignorou por completo as reservas que lhe tinham sido endereçadas por alguns dos seus pares e concidadãos». A mulher de Marcelo Caetano foi submetida a uma leucotomia sem qualquer melhora, assim como alguns anos antes o escritor e jornalista Raul Proença. Aliás, nenhuma estatística relativa a êxitos terapêuticos é favorável à descoberta de Moniz. A maior parte dos intervencionados eram das classes baixas. «Dos exemplos que se conhecem não há um positivo», garante o sociólogo.

Alguns dos críticos acusam o neurocirurgião de ter soltado o seu eureka para a leucotomia depois de, em Londres, em 1935, ter participado num congresso onde Fulton, médico neurologista, apresentou as suas experiências em chimpanzés. Diz Manuel Correia que o próprio Fulton, depois de ter achado má ideia «saltar» dos macacos para os humanos, alimentou a ideia de que os seus trabalhos estiveram na génese da leucotomia. «O pouco que se conhecia e se tinha publicado à época aconselharia a continuar ainda as experiências em chimpanzés até serem conhecidos resultados mais sólidos», diz Manuel Correia.

Moniz, depois daquele congresso, terá ficado convencido de que estava aberto o caminho para aplicar a leucotomia nos humanos. E avançou. «A leucotomia pré-frontal não era assunto que pudesse passar pela experimentação animal e, por isso, avançou directamente para a experimentação na população-alvo», confirma Castro Caldas, justificando Moniz: «Poderá considerar-se arrojada esta atitude, mas a história da medicina está cheia de progressos que resultaram de iniciativas idênticas. Veja-se, no passado, a vacinação da varíola ou, no presente, algumas terapia genéticas para diversas formas de cancro.»

Castro Caldas admite: «A proposta da leucotomia nunca foi compreendida pelos pares de Egas Moniz em Portugal.» Na verdade, «a fragilidade das bases teóricas, a imprecisão dos procedimentos e as diferentes interpretações dos resultados obtidos consolidaram uma dúvida que acompanhou até aos dias de hoje a história da psicocirurgia», diz Manuel Correia, ancorado pelo investigador Miguel Castelo Branco, para quem «o tempo veio confirmar que a leucotomia pré-frontal era um equívoco científico e até ético».

Ou seja, «a mão do homem não é infalível, nem sequer a atribuir prémios…», diz Manuel Correia. Mas, se calhar, «Deus escreve direito por linhas tortas», acrescenta Castro Caldas frisando que, sem Egas Moniz, as ciências do cérebro seriam menos conhecidas. «A sua investigação esteve na vanguarda dos conhecimentos da época», garante. Quanto à polémica que está a surgir nos EUA, ela «resulta da ignorância e da necessidade de protagonismo que se pode conseguir pelas boas e pelas más razões», conclui.


Ambicioso e empreendedor

A 27 de Outubro de 1949, Alberto Caetano de Abreu Freire Egas Moniz recebeu o Prémio Nobel na área da Medicina ou Fisiologia, ex aequo com o neurofisiologista suíço Walter Rudolf Hess, da Universidade de Zurique. Mas gozou por pouco tempo o galardão. A 13 de Dezembro de 1955, seis anos depois, já com 81 anos, morreu na sua casa, em Lisboa, onde o prémio lhe foi entregue. A saúde não lhe permitiu deslocar-se à Suécia. Os dois galardoados nunca se cruzaram nem nunca se falaram.
Na verdade, o neurocirurgião não se chamava Egas Moniz. O sobrenome foi adoptado em homenagem ao educador de D. Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal. A ideia foi do padrinho, o senhor abade de Faria, o padre da aldeia onde nascera. Foi quem o acolheu logo aos 5 anos e lhe proporcionou educação. Os pais pertenciam a uma nobreza já empobrecida pela história.

«Tu um dia ainda vais ser papa», dizia-lhe o sacerdote. Mas Moniz nunca quis saber da vida eclesiástica. Porém, interiorizou o espírito de ambição que o padrinho lhe incutiu. A 31 de Julho de 1899, com 25 anos, terminou o curso de Medicina em Coimbra, com 16 valores. Depois, partiu para França, onde se especializou em Neurologia e Psiquiatria, nas universidades de Bordeaux e Paris.

Contudo, após a formação dedicou-se sobretudo à política, durante mais de vinte anos. Fundou partidos, foi deputado por Estarreja, ministro, embaixador, presidente da Academia das Ciências, entre muitos outros cargos. Quando surge o Estado Novo, que veio depois a usá-lo como herói do regime, Moniz desilude-se com a ciência política e dedica-se à ciência médica.

A experiência internacional ajudou-o a perceber os meandros do reconhecimento. Em vez de esperar que falassem dele, Moniz, que adorava participar em duelos, a maior parte das vezes como júri, escrevia em jornais internacionais, sobretudo franceses, fazia press releases para os meios de comunicação social, ou seja, anunciava-se, descrevendo os seus feitos científicos e pensamentos. Moniz, membro da Maçonaria, deu-se a conhecer ao mundo. Hoje teria criado um gabinete de comunicação, pois os negócios foram também o seu forte. Trouxe para Portugal a fábrica da Nestlé e criou uma companhia de seguros. Os seus biógrafos descrevem-nos como um homem muito vaidoso, seguro de si, empreendedor, ambicioso, sonhador.


Da angiografia à leucotomia

A vida de Egas Moniz está marcada por duas grandes descobertas científicas. A primeira, a angiografia, em 1927, consistiu na visualização das artérias do cérebro através dos raios X, permitindo diagnosticar dentro do crânio. Para a maioria dos cientistas este foi, sim, o grande contributo de Moniz para a ciência, pelo qual deveria ter recebido o Nobel. A sua segunda grande descoberta, em 1935, foi a leucotomia pré-frontal. Este acto médico pressupõe uma operação radical de corte da substância branca dos hemisférios cerebrais, com vista a tratar doenças mentais como a esquizofrenia e certas psicoses. Esta foi a técnica pioneira da psicocirurgia, isto é, do tratamento de problemas psiquiátricos graves através da manipulação orgânica do cérebro. Para isso, Egas Moniz teve de inventar o leucótomo cerebral. O pequeno aparelho que penetrava no crânio é formado por uma cânula de metal com 11 centímetros de comprimento e 22 milímetros de diâmetro externo. Uma das extremidades é fechada e arredondada, a outra aberta, alargando-se de maneira a formar um pequeno apoio à cabeça da peça de comando. Junto à extremidade fechada existe uma pequena janela, por onde, no momento oportuno, sai uma ansa que dá o corte. O histórico instrumento está exposto no Museu da Faculdade de Medicina.


A esposa do director do Diário de Notícias

Era o ano de 1917. Maria Adelaide Coelho, filha e herdeira do fundador do Diário de Notícias, estava casada há 28 anos com o então director do jornal, o escritor Alfredo da Cunha. Uma senhora da sociedade, muito viajada. Mas, já com 48 anos, é apanhada por uma arrebatadora paixão pelo seu motorista, de nome Manuel Claro, e foge para Santa Comba Dão. O marido, poderoso – naquela altura os directores dos jornais ainda eram poderosos –, manda que prendam a mulher no Hospital Psiquiátrico de Conde Ferreira, no Porto. O seu objectivo era que a declarassem inimputável, para evitar que reivindicasse o Diário de Notícias como herança. Mas, segundo a lei, para que ficasse internada era necessário o parecer assinado de três médicos. Alfredo Cunha chamou então Egas Moniz, Júlio de Matos e Sobral Cid para lhes pedir que elaborassem o documento. E assim fizeram. Os três especialistas – um deles viria mais tarde a ser proclamado prémio Nobel – reuniram e disseram que a senhora estava apanhada de «loucura lúcida». Ainda hoje ninguém sabe bem o que é «loucura lúcida». Mas Maria Adelaide foi teimosa e ainda conseguiu viver com o seu Manuel Claro quase durante trinta anos sem nunca terem casado. Esta história está toda documentada na Biblioteca Nacional e já foi contada em folhetim por Agustina Bessa-Luís.


Um movimento cínico e fútil

«É um exercício cínico e inconsequente julgar as duas contribuições de Egas Moniz à luz dos preceitos éticos actuais. Mas, infelizmente, este julgamento retroactivo está muito na moda, sabe-se lá se para a absolvição de más consciências ou para abafar alguns desvarios da modernidade. É fundamental colocar as coisas na perspectiva correcta do tempo.»

A observação é de João Lobo Antunes, neurocirurgião, sobrinho de Almeida Lima, o «braço-direito» de Egas Moniz. E adianta: «Provavelmente, se Egas não tivesse recebido o Prémio Nobel, a sua autoria de um tratamento ainda hoje tão questionado, não só quanto às indicações e resultados, mas principalmente quanto às implicações éticas, teria passado despercebida. Mas sucedeu-lhe aquilo a que sempre aspirou e, até aos nossos dias, a campanha contra a psicocirurgia e o seu autor não tem amainado. O movimento que se organizou para que lhe seja retirado o Prémio Nobel é fútil.» Para o neurocirurgião, «os detractores de Egas, particularmente o infame Vallenstein, acusam-no de que nada na sua obra foi original, como se o progresso em ciência não resultasse também da articulação, por vezes implausível, de conhecimentos e de provas». Em seu entender, «o lugar na história que Egas Moniz procurou com tanta insistência é de pleno direito».